O jogo do século
 



Contos

O jogo do século

Fabian Lisboa


Ao longo da história do futebol vários jogos receberam o título de "Jogo do Século", digo e afirmo que o verdadeiro jogo do século aconteceu no ano de 1997, na Rua Luiz Michelin, em São Sepé, cidade do interior do Rio Grande do Sul. A rua de terra de no máximo quatro metros de largura foi o palco do espetáculo. As goleirinhas mediam 57 cm de comprimento por 44 cm de largura, colocadas uma de cada lado da rua. Atrás de um dos gols, ficava a casa de um senhor, com mais ou menos 70 anos, que nos fins de tarde se sentava na sua cadeira de balanço, para escutar o seu radio de pilha e amaldiçoar com xingamentos a gurizada quando a bola caía no pátio da sua casa.

Do outro lado da rua, um galpão, a parte de trás de uma oficina, que funcionava como uma parede para a bola não ir parar na rua que ficava na quadra de baixo. As linhas laterais eram marcadas pelos quinze meninos que se aglomeravam para ficar com o melhor local para assistir à partida. O que estava em jogo, o título de melhor dupla da rua, além de uma Baré Tutti-Frutti para os vencedores, pagas pelos perdedores. Disputavam a final, de um lado Clébinho e Careca, do outro, Ronaldo e Cusquinho.

Quando baixou o sol, havia chegado a hora, não tinha juiz, a regra era simples, o time que marcasse dois gols primeiro ganhava, ou, quem estivesse com mais gols quando não fosse mais possível enxergar a bola, devido à falta de iluminação. Clébinho e Careca ganharam no par ou ímpar e escolheram campo, o da goleirinha da casa do senhor rabugento. Era melhor para se defender, todo o garoto que jogava tinha medo de chutar forte e pegar nele, acabar quebrando um vidro ou furar a bola em algum espinho da roseira que tinha na frente da casa.

Ronaldo e Cusquinho ficaram com a bola. O jogo começou e Cusquinho rolou a bola para Ronaldo que deu uma paulada que explodiu na trave, tirando a goleirinha do lugar surpreendendo a dupla adversária e arrancando um "puullll" da plateia. Passado o susto, a dupla Clébinho e Careca tomaram conta da partida, em duas oportunidades quase marcaram. Careca driblou Cusquinho e o chute triscou a trave. Na outra Clebinho tentou por cobertura e a bola passou por cima do gol.

Às vezes o jogo precisava parar por motivos de força maior, quando um carro dobrava a esquina. Como se fosse algo ensaiado um bloco de meninos para um lado, um bloco para o outro, o carro passava, os blocos voltavam a se tornar um só e a bola voltava a rolar como se nada tivesse acontecido. Quando o jogo retornou, o primeiro gol saiu. Depois de uma dividida a bola sobrou livre para o Cusquinho que só empurrou para a rede. Explosão da galera, o Baré Tutti-Frutti estava mais perto. E quase que a dupla ampliou liquidando o jogo. Depois de uma jogada de categoria de Ronaldo, que limpou a marcação e chutou, a bola estava indo em direção ao gol, quando um cachorro invadiu o campo e se enredou com a bola que desviou sua trajetória e saiu pela linha de fundo.

Após o incidente do cachorro, a dupla Clébinho e Careca acordou no jogo. Depois de três tentativas, o empate. Careca driblou a marcação de Ronaldo, foi na linha de fundo e cruzou pra o Clébinho que de carrinho levou bola e goleira de arrasto. Quando a poeira baixou, estava 1x1 no placar. A "Guerra da Rua Michelin" já atingia duas horas, as mães começaram a resgatar seus filhos um a um, até restar apenas os quatro na rua. O breu da noite chegava devagarinho para ser testemunha daquele momento. Quando já estavam exaustos, escalavrados, sujos, prestes a desistirem, veio o lance que decidiu o jogo.

Clébinho e Cusquinho dividiram uma bola e ela subiu alto no céu, Careca resvalou enquanto tentava enxergar onde ela ia cair. Como em um filme em câmera lenta, a bola se apresentou pedindo para ser chutada e foi o que Ronaldo fez. A cena ficou congelada e por um segundo, só se ouvia o canto dos grilos e o barulho do vento. Quando Ronaldo pegou em cheio na bola, ela foi sem pedir licença, direto na janela da casa do senhor, que cochilava na sua cadeira de balanço. O vidro se espatifou, o barulho o fez dar um pulo da cadeira, os cachorros começaram a latir, e os quatro só pararam de correr quatro quadras dali.

E assim o "Jogo do Século" terminou. Os anos passaram, a rua ficou menor do que já era e onde ficava a casa, hoje só existe um terreno baldio com uma placa de vende-se cravada nele. O tempo não volta mais, um segundo jogo não vai acontecer, mas com certeza na memória dos quatro garotos da rua, jogo maior nunca vai existir.


FABIAN LISBOA nasceu em Caçapava do Sul/RS, é jornalista e escritor. Autor do livro O ipê amarelo (Caravana 2022) e do livro infantil O menino Chima (2022). Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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